segunda-feira, 29 de julho de 2024

UISQUERIA BICO DOCE



Rio - Sou um apaixonado por botecos. 

Não só de frequentá-los. Fui dono de mais de 20 pés-sujos. Comecei com um bar em Paracambi (RJ), em frente à estação do trem. Depois vieram outros, no centro do Rio, na Lapa, na Gamboa, em São Cristóvão, Bonsucesso, Penha, Ramos, Olaria, Duque de Caxias… 

Dos que frequentei, o que mais deixou saudades foi o ‘Bico Doce’. Era um pé-sujo que ficava no Beco das Cancelas, entre as ruas Buenos Aires e Rosário, com nome sofisticado: ‘Uisqueria Bico Doce’.

Eu tinha uma agência de propaganda ali perto, na Avenida Rio Branco, em cima do antigo Banerj (Banco do Estado do Rio de Janeiro), e às sextas-feiras, invariavelmente, parávamos, eu e o Tony Martinelli, um jornalista que trabalhou na finada revista “Manchete”, no Bico Doce. Só saíamos de lá quando o trânsito caótico da cidade dava uma melhorada.

 A uisqueria, descrita pelo cartunista Jaguar como o último pub do centro da cidade, era um antigo reduto intelectual do Rio. A geladeira da casa ainda era daquelas antigas, de madeira; as mesinhas com tampo de mármore; e as cadeiras de palhinha. Ao entrar, na parede, do lado esquerdo, um quadro amarelado com uma crônica  do Jaguar falando sobre o local, logo chamava a atenção de quem entrava.

Dizia o texto:

“Nostalgia. Faz 45 anos que eu pelo menos uma vez por semana, ia ao ‘Bico Doce’ tomar uns chopinhos com sanduíche de patê. 

O Bico Doce, no Beco das Cancelas, entre as ruas do Rosário e Buenos Aires, era o último pub do Rio. O dono, seu Camello, era o tipo ideal de avô da gente. Rosado, careca, miúdo, com um bigode branco e gravata borboleta preta. 

Seis mesinhas redondas de mármore, cadeiras de palhinha, na parede anúncio da Brahma com mais de 50 anos (um grande gordo enchendo a cara de cerveja). 

Quando eu trabalhava no Banco do Brasil ia sempre lá. A freqüência era de velhos negociantes e corretores da bolsa, os bêbados menos barulhentos da cidade. 

Seu Camello dava duro atrás daquele balcão há 65 anos, sabem lá o que é isso? Ruy Barbosa de vez em quando tomava uma cervejinha lá (bebia mal, era muito fraco para a bebida), o Barão do Rio Branco às vezes também aparecia. Tem até hoje uma mesa reservada lá.

Há anos eu programava uma entrevista com seu Camello. Na semana passada peguei o gravador e me mandei pro Bico Doce para ouvir as histórias dele. 

A tabuleta da porta já não estava mais lá, nem as mesinhas de mármore, nem os velhinhos, nem nada. Só montes de caliça, tijolos e areia. 

Seu Camello morreu, o Bico Doce foi varrido do mapa e na certa vão fazer no lugar um bar cheio de fórmica. Assim é a vida. Uma bosta”.

A casa tinha clientes grã-finos, como banqueiros e tabeliões. O célebre jurista e político Ruy Barbosa vinha tomar umas cervejinhas e o Barão do Rio Branco, respeitado diplomata brasileiro, também aparecia no ‘Bico Doce’. Machado de Assis, gênio de nossa literatura, não só perambulava por aqui, como até incluiu o Beco das Cancelas em seus escritos.

José Camello Teixeira, nasceu na Freguesia de Borba da Montanha, no dia 24 de outubro de 1885. Filho de João Teixeira Camello e Ermelinda Pires. Pertencia a uma família numerosa, de nove filhos, cinco rapazes e quatro moças.

No dia 12 de janeiro de 1899, José, de apenas 13 anos, e seu irmão Domingos, de 15, embarcam para o Rio de Janeiro. A mãe Ermelinda ficou tão desgostosa com a partida dos filhos que morreria pouco tempo depois vítima de um ataque cardíaco. 

Camello começou a trabalhar no bar de um alemão, na rua General Câmara, 246, em pleno centro, perto da famosa Igreja da Candelária. Na ânsia de poupar, provavelmente para não desapontar o pai que queria ver o filho triunfar na vida, pedia ao patrão para guardar todo o salário ganho, ficando apenas com as gorjetas para os gastos necessários. 

Um dia o seu patrão morreu e a viúva como não tinha dinheiro para lhe dar os salários guardados, lhe propôs a compra do bar. Nascia ali, em 4 de fevereiro de 1909, o famoso bar carioca "Bico Doce”.

Durante a Segunda Guerra Mundial, para dar lugar à obra faraônica da Avenida Presidente Vargas - um antigo sonho de Getúlio Vargas para a capital - chegou a notícia de que o bar iria ser demolido. Bairros inteiros em pleno centro histórico do Rio foram derrubados. Mas seu Camello não desistiu e o Bico Doce renasceu no Beco das Cancelas, entre as ruas do Rosário e Buenos Aires. 

No dia 18 de outubro de 1971, a poucos dias de fazer 86 anos, Seu Camello faleceu deixando três filhas -  Ermelinda, Luíza e Elza - do casamento com dona Glória Siqueira da Vinha.

Hoje, o beco já não tem mais as cancelas instaladas nas suas extremidades, o “Bico Doce” e  muito menos o brilho da virada do século.

Ediel Ribeiro é jornalista, cartunista e escritor.

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