sexta-feira, 4 de julho de 2025

AFONSINHO, UM HOMEM LIVRE




por Ediel Ribeiro


Rio - Já escrevi, aqui neste espaço, sobre alguns ex-jogadores profissionais com quem já joguei minhas peladas: Índio (ex-Flamengo), Mendonça (ex-Botafogo), Marquinhos (ex-Vasco), Adílio (ex-Flamengo) Diego (ex-Vasco), Marinho (ex-Botafogo) Marco Antônio (ex-Fluminense), Bernardo (ex-Vasco), Expedito (ex-América), Wagner Pepeto (ex-Bangu) e Zanata (ex-Bahia), entre outros.

Outro dia, encontrei no Bar Ernesto, na Lapa, com  Afonsinho, ex-Botafogo, com quem joguei na Ilha de Paquetá, no Rio de Janeiro.

Afonso Celso  Garcia Reis, o Afonsinho, nasceu em 3 de setembro de 1947, em Marília-SP, mas foi em 1962, na base do XV de Jaú que seu talento como meia-armador despontou.

Aos 17 anos, em 1965, chegou ao Botafogo‑RJ, onde formou um meio-campo de elite e conquistou o Torneio Rio‑São Paulo (1966), a Taça Guanabara e os Campeonatos Carioca de 67 e 68, além da Taça Brasil de 68.

Estávamos na década de 60 e início de 70, período de importantes festivais e a efervescência juvenil do Rock and Roll. Lá fora, surgiam bandas como Beatles, Rolling Stones, Credence, The Who. No Brasil, em meio a ferrenha Ditadura Militar, surgiam cantores como Chico Buarque, Elis Regina, Roberto Carlos e Nara Leão, entre outros.

Junto com o sucesso nos campos, vieram os conflitos: estudante de medicina, politizado e com visual rebelde — cabelos e barba longos, era a cara do guerrilheiro Che Guevara — Afonsinho incomodou dirigentes e militares que viam no seu estilo sinal de subversão e rebeldia.  

Apesar das atuações destacadas até pelo jornalista e tricolor, Nelson Rodrigues, as incompatibilidades vieram à tona quando Zagallo assumiu a comissão técnica do glorioso. Zagallo e o diretor Xisto Toniato consideravam Afonsinho um “líder negativo”. O jogador chegou a sofrer boicote e ser mandado para o banco.

“Zagallo disse que eu parecia tudo: tocador de guitarra, cantor de iê-iê-iê, menos jogador” – disse, rindo.

Em julho de 1970, ele foi emprestado ao Olaria, onde jogou bem, ajudando o clube a alcançar a melhor campanha estadual de sua história. Ao retornar ao Botafogo, ainda barbudo, Afonsinho foi proibido de treinar e teve seu contrato suspenso. Preso pela lei do “passe” - um instrumento jurídico que prendia o jogador ao clube além do contrato de trabalho. Com o passe preso, o jogador não podia deixar seu clube sem autorização dos dirigentes, nem mesmo estando sem contrato e, portanto, sem salário -, o jogador era impedido de se transferir para outro clube. 

Afonsinho comparava o famigerado instrumento a “Lei do Passe”, uma lei vigente na África do Sul - antes do Massacre de Sharpeville - que obrigava os negros da África do Sul a portarem uma caderneta na qual estava escrito onde eles podiam ir, um dos principais elementos do sistema de apartheid.

Determinado a continuar exercendo sua profissão com dignidade, ele recorreu ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva e, em março de 1971, se tornou o primeiro jogador brasileiro a conquistar o direito ao passe livre. A decisão abriu precedentes que só foram oficialmente incorporados pela Lei Pelé em 1998, quase 27 anos depois .

Livre, Afonsinho seguiu carreira atuando por Santos (1972), Flamengo, Vasco, América‑MG, Fluminense, Olaria, Madureira e  XV de Jaú, para onde retornou antes de pendurar as chuteiras, no início dos anos 80.

Após se formar em medicina pela UERJ em 1974, Afonsinho tornou-se médico atuando por décadas no Hospital Pinel e em projetos sociais, como escolinhas no Vidigal e apoio a crianças de rua via ONG IBISS.

Culturalmente, ele virou símbolo de liberdade, homenageado por Gilberto Gil na música “Meio‑de‑Campo”, de 1973, que diz mais ou menos assim: Prezado amigo Afonsinho/Eu continuo aqui mesmo/Aperfeiçoando o imperfeito/Dando um tempo, dando um jeito/desprezando a perfeição/Que a perfeição é uma meta/Defendida pelo goleiro/Que joga na seleção/e eu não sou Pelé nem nada/se muito for, eu sou um Tostão…

O jogador foi retratado no documentário Passe Livre (1974), dirigido por Oswaldo Caldeira, participação reconhecida de figuras como João Saldanha, Jairzinho e Gil. Mas, de todas as homenagens que recebeu na carreira, a que o ex-jogador guarda com mais carinho, é a frase dita pelo Rei Pelé: “Afonsinho é o único homem livre do Brasil”.

Depois que pendurou as chuteiras, Afonsinho trocou os gramados pelas areias da ilha de Paquetá, na Baía de Guanabara. Na Ilha, ele é “o dono” do Trem da Alegria, time de amigos que fundou há 40 anos, para abrigar jogadores que estavam na mesma situação que ele. 

O Trem da Alegria deu carona a jogadores famosos, como Garrincha, Nilton Santos, Paulo César Caju, Jair Marinho e Altair, que  rodaram o país se apresentando pelo time. Mas o TA não era só um time de ex-profissionais, os cantores Fagner, Paulinho da Viola, Moraes Moreira e os Novos Baianos, também embarcaram nesse trem. 

Na ilha, o ex-jogador - hoje médico psiquiatra - é o símbolo de um tempo de luta. É a prova viva de que liberdade não se compra, se constrói — no grito, no gesto, no exemplo. Com barba ou sem.


*Ediel Ribeiro é jornalista, cartunista e escritor.