Rio - A Rua da Carioca, aberta na década final do Século XVII, era um caminho entre a Praça Tiradentes e Largo da Carioca, onde os moradores buscavam água em seu chafariz.
Mas nem se chamava Carioca. Era São Francisco de Assis, em 1882. Mas já foi, há séculos, chamada de Caminho do Egito e Rua do Piolho. Foi batizada de Carioca, em 1898, por causa do Largo da Carioca.
A rua mais carioca do Rio é também a que tem mais histórias. Ali, já funcionou - ou ainda funciona, as duras penas - ‘A Guitarra de Prata’, a ‘Padaria Nova Carioca’, o ‘Bar Flora’, os cinemas ‘Ideal’ e ‘Íris’, o ‘Pasquim’, o ‘Bar Luiz’, o sebo ‘O Acadêmico’, o ‘Zicartola’, o ‘Rei das Facas’, e o ‘Café do Bom, Cachaça da Boa’- uma mistura de boteco com sebo de livros -, entre outros.
Cada um com a sua história.
Frequentei muito a Rua da Carioca. Ia muito ao ‘Pasquim’; já tomei umas cervejas no ‘Bar Flora’; chopinho no ‘Bar Luiz’; comprei livros no sebo ‘O Acadêmico’...
Nas minhas idas e vindas a Rua da Carioca, o meu destino mais constante era um pequeno edifício, estreito, do nº 59, onde funcionou a última redação do ‘Pasquim’. Alí, Jaguar, Reinaldo Figueiredo, Marta Alencar e outros resistentes levaram o hebdomadário até o fim.
Alí ao lado, no segundo andar do 53, funcionava o ‘Zicartola’. O lendário 'Zicartola' (acrônimo de Zica e Cartola) foi um restaurante aberto pelo compositor e sambista Angenor de Oliveira, o Cartola, e sua mulher Euzébia Silva do Nascimento, a Dona Zica. O casal morava em cima.
Durante a Ditadura Militar, a pensão virou reduto cultural e foi também espaço de resistência política. Foi ponto de encontro de sambistas de destaque na cultura brasileira, como Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Nelson Cavaquinho, Zé Ketti, Ismael Silva e Aracy de Almeida, e grandes nomes da bossa nova, como Carlos Lyra e Nara Leão. Foi lá, onde Paulinho da Viola se apresentou pela primeira vez em público e Hermínio Bello de Carvalho concebeu o espetáculo ‘Rosa de Ouro’, de 1965. O bar foi inaugurado em 5 de setembro de 1963 e fechado em maio de 1965. Hoje, apenas uma placa tímida na Rua da Carioca alerta para a importância do antigo restaurante.
Mulheres com vestidos de gala, jóias e chapéus chegavam acompanhadas por homens de fraque e cartola à Rua da Carioca para assistir ao filme "Lili Borboleta", na sessão inaugural do ‘Cine Íris’, outro ícone da famosa rua do Centro do Rio.
O Cine Íris, com sua arquitetura art-noveau, foi fundado em outubro de 1909, por João Cruz, um milionário filho de portugueses que decidiu fazer no Rio "o mais belo cinematógrafo" do país.
Cruz trouxe azulejos em alto-relevo de Portugal, escadarias e grades da França, usou madeiras nobres como peroba e canela nos revestimentos internos e contratou o engenheiro Paulo de Frontin, para cuidar da construção do cinema. O prédio do Íris foi tombado pelo Patrimônio Histórico em 1983. “O melhor do Rio em filmes eróticos” é o orgulhoso aviso que ainda hoje recebe o público fiel do ‘Cine Ìris’.
O Bar Luiz, aberto em 03 de janeiro de 1887, é outro que tem uma grande história. O endereço original do Bar Luiz era Rua da Assembleia, 102. À época, ele se chamava "Zum Schlauch" ("a tripa", em alemão).
Em 1901, o bar mudou para o número 105 da mesma rua e passou a se chamar “Zum Alten Jacob” ("Para o velho Jacob"), em homenagem a seu fundador. Em 1915, uma lei proíbe que estabelecimentos comerciais tenham nomes em língua estrangeira e o bar passa a se chamar ‘Adolph’, em homenagem ao dono Adolph Rumjanek.
Em 1927, a casa, decorada em estilo colonial alemão, migra do número 105 da Rua da Assembleia para seu endereço definitivo: Rua da Carioca 39.
Durante a Segunda Guerra Mundial, estudantes do Colégio Pedro II queriam apedrejar o então Bar Adolph. A destruição foi evitada pelo compositor Ary Barroso, que tomava um chopp no local na hora e explicou que a origem do nome nada tinha a ver com Adolph Hitler.
Depois da confusão, o bar passou a se chamar ‘Bar Luiz’, uma versão abrasileirada do nome de seu dono à época, o alemão Ludwig Vöit. O poeta Emílio de Meneses, o escritor Olavo Bilac e o historiador Sérgio Buarque de Holanda estão entre seus famosos frequentadores.
A chegada dos anos 1930 marca a entrada da salada de batatas no cardápio. A receita é de Ana Vöit, esposa do dono do bar à época. O jornalista Sérgio Cabral já afirmou que sequer na Alemanha se encontra uma versão tão saborosa do prato.
Até 2015, o Bar Luiz não servia cafezinho.
O centenário Bar Flora, no número 16, da Rua da Carioca, na esquina da Ramalho Ortigão, foi outro estabelecimento que fechou as portas. “O armazém português do tempo do Império”, como dizia a placa na porta, fundado em 1880, de pé-direito alto, os imponentes balcões de madeira onde os primeiros frequentadores bebiam e comiam cebolas ao vinagrete, não aguentou o tranco. Jaguar frequentava o boteco quando queria fugir do burburinho do agitado ‘Bar Luiz’, ao lado do ‘Pasquim’.
No 37, também fechou as portas a centenária ‘A Guitarra de Prata’, fundada em 1887 - cujo prédio guarda vestígios de óleo de baleia, usado, na época, como argamassa em construções entre os séculos XVII e XIX. Pela loja passaram músicos como Ary Barroso, Noel Rosa, Pixinguinha, Nelson Gonçalves, Dorival Caymmi, Dilermando Reis, Baden Powell e Paulinho da Viola, entre outros.
Mas, nem tudo é motivo de choro. Ou é.
E, se o ‘Choro’ é carioca, seu lugar é na Rua da Carioca. A rua, com alma carioca, ganhou recentemente um espaço à altura da importância do gênero, a ‘Casa do Choro’. O prédio, no número 38, reúne oito salas de aula, estúdio, centro de pesquisa e auditório para shows e palestras.
Inaugurada em 2016, a casa de três andares guarda 16 mil partituras, dois mil discos de vinil, livros e fotos, tudo ligado ao chorinho. E tem auditório para shows que acontecem, religiosamente, três dias na semana.
Mesmo abandonada, a rua ainda vale uma visita.
*Ediel Ribeiro é jornalista e escritor.
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